Régis Bonvicino on Robert Creeley

O Estado de Sao Paulo [Brazil], April 3, 2005

O legado estético inovador do mestre Robert Creeley

Poeta que morreu na quarta-feira repensou de maneira própria e original as vanguardas do início do século 20

Poesia Memória:

Especial para o Estado

Na última quarta-feira, dia 30 de março, fui surpreendido, no começo da tarde, por um correio eletrônico da ensaísta e crítica Marjorie Perloff, de Los Angeles, noticiando a morte, em razão de um câncer no pulmão, de Robert Creeley. Ele estava em Marfa, Estado do Texas, como poeta residente num programa do Donald Judd Ranch. Em seguida, recebi outro correio, do poeta Charles Bernstein, de Nova Iorque, que acrescentava que ele morreu, pela manhã, logo depois de o sol se nascer, ao lado de sua mulher Penelope e de seus filhos mais novos, Hannah e Willie, este um militante do Partido Verde norte-americano. De imediato, vieram-me à cabeça os versos finais de "Luz da Noite", que traduzi e inclui no volume A Um (Ateliê Editorial, 1997), com poemas e entrevistas de Creeley. Diz o poema : " ... sentado só de novo com / a luz acesa tentando ainda / dormir mas o tédio / e o cansaço de esperar até tarde / da noite pensando em alguma / estúpida simples luz do sol". E Bob, como era chamado, foi-se, ao menos, sob a "estúpida simples luz do sol", embora o tenha sido sob o sol de uma manhã texana, justamente ele que se tornara, nos últimas anos, um opositor duro de George Bush e também partidário, militante, como seu filho Willie, dos Verdes e das candidaturas de Ralph Nader, o que lhe custou críticas por parte dos intelectuais que apoiram Al Gore e John Kerry. Os últimos trinta anos de Creeley foram vividos na cidade de Buffalo, Estado de Nova Iorque, onde lecionava na Universidade Estadual, e, de dois anos para cá, em Providence, Boston, como professor da Brown.

Creeley nasceu em 1926, na cidade de Arlington, no Estado de Massachusetts, na região denominada Nova Inglaterra. Ficou órfão de pai aos quatro anos e, aos cinco, perdeu seu olho esquerdo num acidente provocado por um carro, eventos que, segundo ele mesmo, marcariam sua vida. Abandonou o curso de Letras em Harvard. Serviu o exército americano durante a Segunda Grande Guerra na Índia e em Burma. Editou revistas de poesia. Deu aulas no lendário Black Mountain College, entre 1954 e 1955. Sua bibliografia é bastante extensa: estreou, como poeta, com um livro inovador, em razão de sua substantividade, intitulado For Love: Poems (1950-1960). Publicara algumas plaquetes anteriormente. Escreveu um romance significativo A Ilha, 1963, reflexões sobre o período em que morou em Mallorca, na Espanha.
Entre os seus livros de poesia, gostaria de destacar alguns, remarcando que a produção de Creeley quase nunca foi um sucesso... de crítica, embora tenha tido, sempre, muitos leitores: na maior parte de seu percurso, foi atacado por críticos, que não aceitavam os "seus primitivos jogos de linguagem" ou que não entendiam suas construções que eram, aparentemente, simples ou mesmo tachadas de simplórias. Creeley nunca ganhou prêmios e viveu quase sempre à margem. Destacaria livros importantes, além do já mencionado For Love, como Words (1965), Pieces (1968), Maztlan: Sea (1969), Thirty Things (1974) e os mais recentes Later (1978), Echoes (1982), Mirrors (1983), Windows (1990) e aquele que se pode considerar seu último volume de poemas Life & Death (1994).

Creeley é o poeta que repensou, de uma maneira própria e original, a partir dos anos 1950, o legado das vanguardas do início do século 20, vanguardas estéticas e políticas. Conviveu, no início, com inúmeros artistas de diversas correntes, entre eles William Carlos Williams e Ezra Pound, a partir dos quais, ainda também com as releituras de Thoureau, da Desobediência Civil, e Emerson, inventou uma poesia extremamente substantiva, construtivista, e, ao mesmo tempo, emotiva, descolando-se dos modelos mais óbvios das experiências vanguardistas de sua geração: a poesia beat, o verso projetico, e a poesia étnica nos EUA e as diversas poesias concretas, por exemplo, da Europa e do Brasil. Creeley esteve em diálogo com muitos artistas de várias áreas e estilos, como já se observou. Foi parceiro dos artistas plásticos do Expressionismo abstrato, como Jasper Johns, Frank Stella, Franz Kline, com os quais se reunia no lendário Cedar's Bar, em Nova Iorque. Foi amigo dos beats e, entre eles, especialmente, de Allen Ginsberg. Participou, nos anos 1950, da Renascença de São Francisco, movimento que fez eclodir a poesia beat e do Black Mountain College, ao lado de Charles Olson e Robert Duncan e John Cage, onde foi criado o "verso projetivo" e toda uma nova estética. Esteve próximo do cool jazz de Miles Davis e John Coltrane.

No dizer de Marjorie Perloff, que lhe reservou um estudo longo em seu Wittgenstein Ladder (1996.), "Creeley tem sido não apenas um poeta relativamente popular (na Alemanha, seus Collected Poems integraram a lista dos mais vendidos) mas, de um modo muito interessante, um poeta de poetas, cujo trabalho vem comandando a atenção não apenas de seus contemporâneos Black Mountain College e Beats (Charles Olson, Robert Duncan, Denise Levertov, Ed Dorn, Allen Ginsberg, Gilbert Sorrentino) mas dos novos autores, sobretudo, os associadas à Language Poetry como de Charles Bernstein, Lyn Heijnian, Michael Palmer,, Susan Howe e outros". Para estas novas gerações, prossegue a grande crítica norte-americana "o minimalismo de Creeley pode ser entendido como um novo tipo de realismo, linguagens em suas formas primitivas que nos revelam jogos e mistérios das comunicações comuns".
Mantive uma amizade intensa com Creeley, que me ajudou a ampliar os meus conceitos de inovação em poesia, para além dos limites de nossas "eternas vanguardas"... Essa amizade começou em 1995 e durou até cerca de dois anos atrás. Ele me mandou um correio, anunciando sua mudança de Buffalo para Providence. Parecia-me inesgotável. Como alguém pode mudar de casa aos 77 anos? Fiz uma leitura de poemas aqui em São Paulo com ele em 1996, no Memorial da América Latina e, depois, em 2000, assisti a uma grande leitura sua, em Chicago, com umas 400 pessoas na platéia. Nunca ouvi leitura tão fascinante quanto a dele, com sua voz grave e introspectiva, que tirava sentidos imprevistos das palavras. Para finalizar esta nota, breve, sob o impacto da notícia de sua morte, pensei em transcrever o poema "Consolatio", onde ele escreve : "... para começar agora -- / porque o temer o fim.". Mas, pensando bem, e, em resgate da figura inesgotável de Bob, prefiro transcrever "Vida": "Específica, intensiva claridade, / como nada mais, / nada menos / que ela mesma - / tudo isso, ecoa, / visto, ouvido, sentido / ou provado, o uno / e múltiplo. Mas / o punho contra / a porta, pergunta / magro, contrita entrada / quer mais".

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Régis Bonvicino é poeta, autor, entre outros, de Remorso do Cosmos (Aleite Editorial, 2003) e editor da revista Sibila.